sexta-feira, 8 de julho de 2011

A tal de Alice


- Parte 1: A poesia de Adelaide -


"Como eu consegui achar alguém que me ama tanto?
Como eu posso amar tanto alguém a ponto de querer me casar?
Como não ficar olhando esses olhos tão perfeitos?"

Estava lendo as cartas de Adelaide pela última vez.  Resolvi acabar de ver com esse espetáculo e me livrar da sombra dela antes que ela se livre de mim.

Tudo que me fazia lembrar dela — presentes, rascunhos de músicas, fotografias e, claro, cartas — estava sendo colocado em um saco de lixo. Depois, eu iria queimar tudo e esquecer, pelo menos por essa vida, que Adelaide existiu. Não posso deixar que um amor fácil de adolescência acabe com minha sanidade, simples assim.
Só que o interfone tocou.
Será que alguém naquela "festa" não percebeu que eu queria paz? Eu só queria ficar um pouco sozinho, será que nem isso ele podem me dar de presente? Deus do céu...
— Oi — Falei secamente no interfone.
— Tem uma tal de Alice querendo falar com o senhor.
Alice? Mas não conheço nenhuma Alice...
— Manda subir.
Desliguei o interfone e enchi um copo com água gelada. Já aconteceu isso comigo algumas vezes na vida, mandar mulheres no meu apartamento. Era um presente, alguma vadia para eu relaxar com meia hora de sexo.
Bebi a água em um piscar de olhos, olhei para a noite pouco estrelada e tentei achar Adelaide nela. Eu estava irrequieto, eu precisaria desabafar com "a tal de Alice" antes de transar com ela.
E a campainha tocou.
Olhei pelo olho mágico e o que vi não era nada ruim. Cabelos negros, com mechas azuis; olhos pequeninos e levemente esverdeados; seios fartos e quadril igualmente grande. E o melhor, não tinha cara de ninfeta. Parecia ter mais de trinta anos.
Peguei a chave, rodei na fechadura e vi Alice por completo e em tamanho real. Ela estendeu a mão para eu cumprimentá-la. Comecei a achar que ela não era uma vadia qualquer.
— Olá, Alice — Apertei a mão dela com delicadeza e até me esqueci de beijá-la. Fiz um sinal para ela entrar, e Alice andou calmamente para o interior do meu apartamento.
Ela ficou olhando as paredes com atenção antes de falar qualquer coisa. Parecia procurar algo antes de tirar a jaqueta de couro e me enquadrar na parede.
E aí ela tirou a jaqueta e me perguntou onde ela poderia deixá-la. Falei para ela deixar onde quisesse. Alice, então, deixou no braço da poltrona e sentou nela com as mãos entre as coxas. Sentei na cadeira de frente para ela sem nenhuma pose. Ela não parecia querer transar comigo.
— Rodrigo, eu... preciso te falar algumas coisas — Alice tinha uma voz rápida e levemente estridente. Como em um passe de mágica, Adelaide me veio à cabeça. Ela tinha a mesma voz de pássaro.
— Sobre...?
— Sobre mim, sobre você... e também sobre Adelaide.
Até ela falar "Adelaide", meu olhar era vago e disperso. Quando falou, meu cérebro entrou em um nó tão grande que meus olhos perderam a habilidade de piscar.
— O que tem Adelaide?
— Vocês começaram a namorar quando tinham quinze anos. Foram juntos até os dezessete anos, mas terminaram a relação porque ambos tinham que viajar, certo?
— Sim — Respondi com uma interrogação no tom de voz. Quem era essa mulher de palavras tão diretas quanto as minhas?
— Então... ela não viajou para a Inglaterra. Ela mentiu.
Alice falou com o olhar baixo, esfregando ininterruptamente as mãos. Estava mais mtensa que um coelho sendo carregado por uma ave de rapina.
— O voo para Londres tinha escala em Salvador. Ela ficou lá, onde alguns parentes dela moravam. Os pais dela também não sabiam de nada disso. Ela armou esse esquema para ninguém saber.
— E por que ela fez isso? — Em vez de dizer "faria", minhas pregas vocais falaram "fez". Por algum motivo, eu acreditava inconscientemente em Alice.
— Ela estava grávida.
E aí, tudo fazia sentido.

Olhei dentro dos olhos de Alice. Lembrei da carta que estava lendo antes dela chegar, e me veio à mente meus olhos. Olhos que Adelaide amava, e que mais ninguém soube amar. E vi que aqueles olhos pequenos da mulher à minha frente eram meus.
Alice era minha filha.
— Ela não queria contar isso para ninguém, tinha medo. Confiou na tia-avó baiana e teve a criança lá. Era uma menina. Essa menina... sou eu.
Adelaide sempre quis uma filha chamada Luciana, mas sabia que eu gostaria de ter uma Alice. E, no final, tive.
— Claro, ela nunca chegou a te trair, então ela sabia que eu era mérito seu também. Por isso me deu o nome que você gostaria de dar à sua filha. Mesmo assim, resolveu me esconder de todos. Fui criada pela família baiana dela até completar dezessete anos, quando ela me empregou na ZooSisters e fingiu que eu era só uma funcionária da ONG. Até hoje dá para contar nos dedos de uma só mão quem sabe dessa história.
— Ela não te contou sobre mim por uma razão especial: ela não queria estragar sua carreira. Estava tudo tão certo com o Portobello Club que uma filha só destruiria seus sonhos. E Adelaide sempre quis te ver feliz, e até hoje é assim. Ela me disse para vir hoje, pois sabia que esse era o momento certo da sua vida para saber de mim. Então, considere-me como o presente dela para seus cinquenta anos.
Alice sorriu com o que se pode chamar de receio. Ela havia ateado fogo em mais da metade das minhas comvicções, temia minha reação diante disso tudo. Só que eu estava feliz, como nunca havia sido na vida.
— Olha, eu não podia ficar tanto aqui, ainda tenho que terminar os relatórios de importação da ZooSisters Macapá, então já vou indo, tudo bem?
— Você promete que vai voltar?
— Não. Eu quero que você me procure. E procure também Adelaide, ela sente sua falta. Mas não tente nem insinue nada, o marido dela é muito ciumento. Tchau, pai.
E Alice levantou da poltrona, vestiu a jaqueta e saiu do meu apartamento. Eu, por minha vez, não sabia mais levantar da cadeira. Um sorrisos bobo havia tomado conta da minha boca, e eu não conseguia pensar em nada além dos olhos da minha filha. Eles eram meus.
Olhei de novo pela janela. Desta vez, encontrei Adelaide entre as nuvens. E acho que me encontrei também. E nós dois não estávamos juntos, mas estávamos felizes. Agora, nós dois podíamos dormir em paz. Colocamos o ponto final em nossa carta, dobramos o papel e o guardamos. Em nossos corações.

"Bem, vou acabando essa carta por aqui.
Te amo, e mesmo eu não sabendo quanto tempo vai durar, eu sei que vou me lembrar pra sempre de você.
Ich liebe dich. Für immer. "



- Posfácio -

Vocês não têm noção da pressa com que digitei isso aqui. E não consegui achar fotos decentes também, mas pelo menos acabei, galera! Essa história me custou muito trabalho mental, acreditem. É aquela velha história do passado desenterrado, mas no meu caso acho que estou enterrando agora com esse fim.
Parei de falar. Comentem aí se gostaram da série e pronto. Aê.

(alguém sentiu insatisfação nesse posfácio? quer dizer, além de mim)

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