quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O pacifista





“Mas as pessoas são tentadas quando são atraídas e enganadas pelos seus próprios maus desejos. Então esses desejos fazem com que o pecado nasça, e o pecado, quando já está maduro, produz a morte.” (Carta de Tiago, 1. 14-15)


— Como ela era?
— Loira, alta, linda... parecia de Curitiba ou de Floripa.
— Pode me dar mais detalhes?
— O cabelo dela é cacheado e longo... os olhos são verdes e... e... bah, ela é perfeita.
— Perfeita?
Tive que me retirar depois daquele idiota dizer uma coisa daquelas. Uma mulher que amaldiçoa a vida de qualquer um que vá para a cama com ela está bem longe de ser perfeita. O próprio homem com quem falava — Raimundo, que comeu a loiraça há menos de uma semana — está cego de um olho e com  a pele coberta de feridas que não cicatrizam.
Antes dela, sua visão era perfeita.
Essa “mulher perfeita” é quem procuro desde que desci às ruas do centro de São Paulo. De fato, ela é um anjo de pessoa. O problema é que ela é um anjo. Um anjo que cansou da vida monástica de cordeiro de Deus e resolveu se entregar às noites paulistanas. Com a beleza estonteante que resolveu ter, entra em rodas de amigos sem dificuldade alguma, e sempre sai delas acompanhada por alguém, sem distinção de cor, sexo ou credo.
Ninguém sabe o nome dela.
Só eu sei.


O horário mais confortável para encontrá-la seria à noite, então tentei sondar todas as boates e barzinhos possíveis durante a tarde, o que me tirou muito dinheiro, mas foi extremamente agradável. Às vezes até entendo o lado dela de querer fugir do céu: A Terra é infinitamente mais divertida, com tantas pessoas diferentes, mas seguras de sua identidade... Depois desses favores, pedirei a Deus um Vale-Terra, só para curtir uma rave ou algo assim.
— Posso me sentar contigo, gato?
Imerso nesses pensamentos, nem notei a aproximação de um homem. Ele provavelmente queira me levar pra cama, mas eu estava tão preocupado com o ano fugitivo que respondi positivamente à pergunta dele. Em outras ocasiões nem responderia.
— Qual seu nome?
— Zara.
— Zara? Que nome... diferente. Bonito, mas diferente. Prazer, Samuel.
Apertamos as mãos e olhei no seu sorriso pseudo-sedutor. Eu não queria cortar o barato do mulato de moicano dando um fora, ele ainda poderia ser útil. Parecia ser familiar ao bar onde eu estava.
— O que um homem lindo como você tá fazendo sozinho nesse balcão de bar?
— Procuro por uma mulher. Você é dessas bandas aqui?
— De quinta a domingo, sim. Quem você quer?
— Uma loira de um metro e oitenta, de olho verde...
— Peitudona?
— Sim.
— Uma que tá sempre de branco?
Sim!
— Um amigo meu já transou com ela. Faz umas semanas aí...
— Teria como eu falar com ele?
— Só se você for o Chico Xavier, meu bem. Ele morreu domingo passado. Pegou uma febre que deixou ele de cama logo depois dessa loira aí.
(Maldita. Esses homens e mulheres não merecem pagar pelo seu pecado.)
— Mas você sabe onde eu posso encontrá-la?
— Hoje ela deve ficar aqui pela Augusta mesmo. Todo sábado ela vem, desde o começo do ano.
— Hum... está bem, obrigado.
— Tá, agora fala sobre a sua vida, gato.


Samuel se revelou um gay muito respeitoso. Percebeu que eu não comia da fruta dele em pouco tempo de conversa, e assim parou de me chamar de “gato”. Quando eu tiver meu Vale-Terra procurarei por ele. Dialogar com ele faz as horas se dissiparem sem muito esforço. Bem diferente do quieto Samuel que conheço há tempos.
Era nove e meia da noite quando o mulato teve de ir, era barman em uma boate. Comecei a andar pelas calçadas que estavam ficando cada vez mais lotadas, tentando achar o mulherão loiro no meio da multidão. Não parecia uma tarefa difícil, mas quando a Rua Augusta foi invadida em peso pela variada fauna paulistana notei que precisaria de uma força incrível do acaso para achá-la.
(Não que eu acredite no acaso, mas não quero ficar usando o nome de Deus em vão.)
Gente de cabelos de todas as formas, cores e tamanhos perambulavam segurando toda bebida alcoólica disponível no mercado, movidos a tropeços e zigue-zagues das pernas bambas. Não posso negar a diversão que era ver isso. Mas eu tinha um trabalho a fazer.
Entrei em uma boate aleatrória. A batida ensurdecedora da música fazia meus tímpanos se comportarem como máquinas de lavar roupa. À minha frente só conseguia ver luzes estroboscópicas me confundindo como punhados de estrelas cadentes sob meus olhos.
O inferno deve ser parecido com isso.
— O gato tá sozinho?
(“Gato” de novo? Preciso de um rosto menos atraente.)
Uma voz sussurrou nos meus tímpanos headbangers. Era um silvo dócil e que eriçaria o prazer de qualquer pessoa. Só que eu não sou uma pessoa, que pena.
— Esmirna.
— Hã?
— É o seu nome, não é?
— Zara?
Valeu, acaso.
— Com certeza. A festa acabou, hora de ir pra casa.
Quando terminei a frase, ela largou meus quadris, afastou a boca do meu ouvido e ficou lá, paralisada. Virei para ver os olhos hipnotizantes de Esmirna, agora sem vida e — com certeza — sem fé.
— Você é um anjo menor, você... você não pode me levar.
Só que ela sabia que eu podia.
Enquanto ela repetia “não pode” com a voz trêmula, dava singelos passos para trás até sair correndo para a porta da boate. Esmirna correu como nunca havia feito e se chafurdou sentada em uma viela onde estavam duas mulheres se beijando que pouco se interessaram com o anjo a poucos passos delas.
Tinha pena dela. Tanto tempo sem ser um anjo a fez esquecer que ela podia simplesmente desvanecer em vez de usar suas pernas virgens de corridas.
Eu não esqueci.
Surgi na frente dela, já ajoelhado. Agarrei seus braços, pressionei Esmirna na parede e fiquei observando o anjo desesperado, o anjo arfante, o anjo que já nem sabia o que era ser um anjo.
— Dois anos matando homens e mulheres que só queriam uma noite de farra é demais, Esmirna.
— Me deixa aqui!
— Pra quê? Pra infectar mais pessoas com o seu pecado? Eles não estão fazendo mais do que seus instintos permitem. — Eu via o anjo chorar, pedindo perdão mas ao mesmo tempo com uma expressão que indicava que faria tudo de novo se pudesse. Como um anjo pode se tornar... isso? (Pergunte a Lúcifer) — O Diabo sempre foi mais forte que você.
— Eu sou uma anja menor, Deus nem se importa comigo.Até você é mais respeitado do que eu.
— Claro, você se comporta como uma débil mental!
Agarrei o pescoço dela, procurei uma adaga na minha cintura e a encostei na jugular branca de Esmirna. Ela estava com medo da morte, imaginem só. Trocara a vida eterna por menos de um século de vida material.
— Espera — Ela dizia em um tom choroso — Posso fazer uma... uma última pergunta?
— Seja rápida.
— Por que você e não Miguel, ou Gabriel, ou até o João?
— Só eu aceitei fazer esse trabalho sujo de descer à Terra. Eles estão muito ocupados se vangloriando de suas vitórias. É só isso?
— Só.
Em poucos segundos, o pescoço rasgado de Esmirna havia sumido junto de seu corpo em plumas brancas pelo céu pouco estrelado de São Paulo. Já não havia mais sangue na adaga, e o casal lésbico voltou a se beijar depois de assistir à insólita cena.
Saí da viela pensando que Esmirna não faria mais falta no ecossistema da Augusta; saí de São Paulo concluindo que ninguém faz falta. Nessa terra de ninguém, o que interessa é a alegria, a bebedeira e a luxúria anônima. Acho que nem Samuel se lembrará de mim em poucas semanas. Talvez seja melhor assim.
E pensar que Esmirna disse que Deus não se importa com ela. Fora tão influenciada pelo anonimato festivo das boates que esquecer que para Deus todos têm um nome e uma história.
O meu nome é Zara.
A minha história você ainda vai conhecer.


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Aqui é o @mrpitanga falando, desejando uma frutífera carreira no Heavens will burn pra mim. Uma boa noite para todos (:

2 comentários:

  1. PQP ~~ AGORA QUE ESSE BLOG BOMBA MESMO*---*
    Tipo, parceria super fodona, heein(?)
    gostei demais demais demais do post*
    Muito bom meeeeeeesmo♥
    bgks&bgks
    @dkdree_

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  2. Muito muito muiito boom *O* adorei a descrição e enredo *---* está de parabéns!

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